As Cavalhadas de “Piri”

Texto e fotos: Adriana Silva

As portas da cidade histórica de Pirenópolis se abrem para as Cavalhadas de 2016. A festa que dura três dias reconstrói  a guerra entre os mouros e os cristãos durante a dinastia carolíngia, em finais do século VIII D.C. A representação foi instituída no século XIII em Portugal, para incentivar a exaltação da religião cristã e o repúdio aos mouros de religião islâmica, vindos da Mauritânia no noroeste da África para a Europa. No Brasil a festividade foi trazida pelos jesuítas portugueses como uma forma de catequização dos escravos e índios e em 1826 foi incorporada em Pirenópolis pelo Padre Manuel Amâncio da Luz.

Introduzida na festa do Divino Espirito Santo o espetáculo é realizado em uma arena, conhecida como cavalhódromo. Nesse espaço 12 cavaleiros vestidos de azul e branco – cores que representam o cristianismo – se agrupam ao lado poente do sol e se preparam para lutar contra os 12 cavaleiros mouros vestidos de vermelho, que se posicionam ao lado nascente do sol. Essa tradição encanta olhares vindos de longe, como os do mexicano Ismael Rivas Montolongo, de 28 anos. O  católico que está de passeio ao Brasil assistiu pela primeira vez as Cavalhadas e demonstrou seu encanto pela festa e pela beleza da cidade: “Esta ciudad és muy hermosa! Divina ”.

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Ismael Rivas Montolongo

Além do confronto entre os mouros e cristãos, outra expressão religiosa e folclórica presente nas Cavalhadas são os Mascarados. Há ainda dúvidas sobre a origem exata da manifestação, podendo ser oriunda de Portugal e também possuir influência africana. Misturando o profano ao sagrado os Mascarados  têm a função de espalhar alegria e espantar os maus espíritos. Eles dançam nas casas onde são convidados durante o evento e desfilam no cavalhódromo e nas ruas da cidade vestidos com uma fantasia mais criativa do que a outra. Caras de bichos como de boi e onça são mais comuns e  flores a decorar as máscaras e os cavalos.

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Não há regras entre os Mascarados, tudo é permitido, menos mostrar sua identidade

O colorido de suas roupas e a algazarra que levam por onde passam alegram ou intimidam as pessoas. E muitas vezes essas figuras demonstram rebeldia  ao desfilarem no cavalhódromo, quando eles permanecem tempo a mais do que lhes foram designado no espaço. Atitude que atrasa o evento e gera mais trabalho ao locutor Isaías Filho Dias, que tem a missão de dirigir a festa. Depois de algumas vaias da plateia os Mascarados acabam saindo da arena, alguns galopando com seus copos de bebida nas mãos.

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Isaías Filho Dias, 63 anos

O senhor Isaías narra a festa há 25 anos e como morador  da cidade falou  dos detalhes nos preparativos das Cavalhadas durante todo o ano. Um exemplo disso são as roupas dos exércitos dos mouros e cristãos,  produzidas  manualmente pelas senhoras da cidade há  30 anos. As vestimentas recebem os símbolos do cristianismo como a pomba, a cruz e o cordeiro e os símbolos dos deuses pagãos como a borboleta, o dragão e outros animais, que são bordados em lantejoulas e pedrarias,  dando cores e beleza a encenação.

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Os detalhes dos símbolos do cristianismo

Outra figura importante da festa é o rei cristão Adaiu Luiz Cardoso, que há 14 anos encena o chefe superior das Cavalhadas. Seu papel é o de puxar a fila do exército pronunciando ordens de comando. O senhor que participa do evento há 34 anos deu dicas de como se tornar um cavaleiro. “Primeiro deve possuir no mínimo dois cavalos,  para não sacrificar o animal durante os três dias da festa e ensaiar muito ao decorrer do ano”. Também explicou a função simbólica da sua  tropa  no andamento da encenação: “Os cristãos tem a missão de convencer os mouros a aceitarem Deus em sua totalidade: Pai, Filho e Espirito Santo”.

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Rei Cristão Adaiu Luiz Cardoso, 51 anos

E muita gente aproveita a festividade para ganhar um dinheirinho! Vende-se de tudo em volta do cavalhódromo: comidas, bebidas, doces e  lembrancinhas da festa do Divino, como o símbolo da pomba de asas abertas dentro de tampinhas de garrafas long neck  e os bisquis com cara de boi, representando os Mascarados. A dona Angélica Rosa, de  53 anos, aprendeu com a mãe a fazer essas lembrancinhas quando era criança e consegue faturar com as vendas cerca de 200 reais por dia durante as festividades na cidade.

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A artesã  Angélica Rosa na venda de suvenires

E assim, a festa que é tradição em Pirenópolis  movimenta o comércio e ajuda vendedores informais e artesões com a venda de seus produtos. Também acolhe pessoas vindas de todos os cantos de Goiás, do Brasil e do mundo, que se ajeitam nas arquibancadas do cavalhódromo e admiram o espetáculo de cores, beleza, arte e religiosidade.

Patrimônio Cultural

Saberes; celebrações; formas de expressões cênicas; ofícios e modos de fazer  também são considerados Patrimônio Cultural. O conceito se ampliou na   Constituição Federal de 1988, em seu artigo de 216 , ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial.

Segundo o Professor do curso de Museologia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Tony William Boita é impossível desassociar o material do imaterial: “O Patrimônio Cultural se distingue por integrar os diferentes patrimônios. Não se fala apenas que aquele bem é material ou imaterial e sim cultural, porque é impossível desassociar o material: o que o homem produz manualmente, com a imaterialidade que é a técnica, a música, o pensamento”.

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Professor Tony William Boita

Também na visão de Tony o tombamento do patrimônio é um ato político, já que garante à comunidade a manutenção de algum bem que se faz importante socialmente.  Um exemplo é as Cavalhadas, eleita Patrimônio Cultural Imaterial de Goiás, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2010. A  festa envolve um grande número de pessoas de diferentes grupos e gera a circulação de capital cultural e econômico para a cidade.

As Cavalhadas também são realizadas em outras cidades brasileiras e cada festa possui uma identidade própria, apresentando características do território no qual foi introduzida. E quando essas manifestações recebem o título de Patrimônio Cultural, há uma maior garantia para as comunidades que as realizam e o Professor Tony explica: “Quando se registra um bem, não está registrando uma imaterialidade, mas sim registrando diferentes vozes e diferentes modos de fazer, garantindo a subsistência de diferentes pessoas”.

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