Texto e fotos: Adriana Silva
Em meio às ruas de pedra da histórica Cidade de Goiás se cruzam turistas e pessoas da comunidade local para a contemplação da procissão do fogaréu durante a Semana Santa. As celebrações se iniciaram em 1745, quando a Igreja Matriz de Sant’Ana foi reconstruída e inaugurada para o evento, data registrada em livro ata da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos. O padre da época, João Perestelo de Vasconcelos Espíndola, introduziu a figura do farricoco na festividade, que só ganhou as feições que conhecemos hoje com a fundação da Organização Vilaboense de Artes e Tradições – OVAT, em 1965.
O atual presidente da OVAT, Rodrigo dos Santos e Silva, trabalha como voluntário na organização de todos os eventos ocorridos na cidade durante a Semana Santa há 22 anos. Ele falou sobre algumas dificuldades encontradas para se manter a tradição como a pouca ajuda financeira do governo:“Esse ano recebemos apenas o pagamento do som”. Rodrigo ainda ressaltou a necessidade de fazer novas roupas para os farricocos no próximo ano, já que as mesmas tem mais de cinco décadas.
A vestimenta utilizada é feita com um tecido chamado failete, que é mais fresco e bonito que a seda e o cetim. Essas roupas foram criadas na década de 1960 pela artista e pintora vilaboense Goiandira do Couto, que se inspirou na palavra “farricoco” para desenhá-las. Segundo o dicionário de português Michaelis a palavra significa: “Aquele que acompanhava as procissões de penitência, vestido de hábito escuro e com capuz a cobrir-lhe a cara, tocando trombeta de espaço a espaço.”
O presidente da OVAT também esclarece que os homens que se vestem para a encenação devem ter no mínimo 1,70 de altura, para que a roupa não se arraste pelo chão. Tudo por uma questão estética, já que os olhos da cidade e as câmeras de TVs nacionais estarão apontadas para eles antes e durante a procissão.
Por volta das 23h 40 os homens se vestem no Quartel do Vinte, alguns mantêm o costume por quase 30 anos, como é o caso do violaboense Luiz Carlos Tomás, que se caracteriza de soldado romano prestes a prender Cristo desde 1987. Outros vêm de cidades próximas, como o Sr. Welio Oliveira, da cidade de Jaraguá e Élder Camargo de Passos, da cidade de Jussara, ex presidente da OVAT.
Dentre esses homens, conheci Juventino Nunes da Silva Neto, que participa há oito anos da procissão e nem a doença nos rins o impediu de dar continuidade a tradição. Ele vive de auxílio-doença do INSS e vai para Goiânia três vezes por semana para realizar o tratamento de hemodiálise, com transporte oferecido pela prefeitura da cidade que tem um carro destinado a esse fim. Emocionado diz que a Semana Santa é um “momento de renovação e de fé em Deus”.
Luzes apagadas tochas acesas
Ao badalar da meia noite as luzes são apagadas, os farricocos percorrem descalços as ruas de pedra até a Igreja do Rosário, os passos são rápidos e a cidade se transforma em teatro a céu aberto, voltam-se mais de 2 mil anos na história. Voluntários do curso de turismo da Universidade Federal de Goiás (UFG) distribuem em torno de 300 tochas para as pessoas que seguem a procissão. O rio de fogo desliza pelas ruas e aquece a multidão.
Simón Lio é da cidade de Córdoba e Letícia Cailly, de Mendoza, todas localizadas na Argentina. Chegaram no mês de março ao Brasil em intercâmbio pela UFG, e surpreendidos com a procissão, disseram nunca ter visto algo parecido. “É um evento muito esquisito, que nunca havia visto. Brinquei com meus amigos de que parecia o Ku Klux Klan e também um evento de outra época, como da Idade Média” diz Simón.
A procissão encanta e surpreende e mesmo com o passar dos anos a tradição persiste. Os fiéis se juntam em frente à Igreja de São Francisco, o estandarte com a imagem de Cristo é erguido junto ao som da música fúnebre, e um momento de silêncio é conduzido por um sentimento de tristeza e nostalgia. Por fim, uma missa é celebrada e os fiéis esperam pelo domingo de Páscoa, data que celebra a ressurreição de Jesus.
Tochas feitas de plástico
Para quem acha que se vestir de farricoco é só para gente grande, está enganado. A Escola Letras de Alfenim encena a procissão com seus alunos desde 1999 na quarta-feira da semana santa às 17 horas. Ebe Maria de Lima Siqueira, diretora da escola, conta que o Fogareuzinho faz parte do projeto Educação Patrimonial, que desenvolve atividades que valorizam a cultura local, importantes para o crescimento intelectual e social da criança – “eles vão conhecer e preservar, é isso que vai garantir que essa tradição não morra”, declara.
Do Fogareuzinho participam em média cem crianças, são meninos e meninas de dois a doze anos que seguem o ritmo dos tambores e taróis da Fanfarra, composta normalmente por ex-alunos. Duas crianças mais velhas carregam as tochas tradicionais, acendidas no início da procissão, as demais marcham segurando tochas feitas com cabo de madeira e garrafa pet. Os pais, moradores e turistas acompanham e assistem a procissão dos pequeninos, que sai da porta do Museu das Bandeiras, percorre a rua principal da praça do Chafariz,contorna a Praça do Coreto e termina em frente a escola, onde é encenada a prisão de Cristo.
Lilian da Mata Velino, estudante de Serviço Social, participa da atividade com a filha Júlia desde quando a pequena tinha dois anos de idade. A mãe fala sobre a importância do incentivo à cultura da tradição vilaboense e conta que a filha “acha um máximo” participar do Fogareuzinho.
Como muitos pais não gostam de levar os filhos para assistirem a procissão quarta feira a noite devido ao horário e o tumulto, o Fogarelzinho é um meio de apresentar e ensinar a eles de forma prática, o significado simbólico e cultural da tradição. Assim, o misterioso e incompreensível passa a ganhar forma e valor na memória afetiva destes pequeninos.